quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O atravessamento

Ela ia de um lado para outro, ajeitava uma coisa aqui, outra ali. Passava na frente da televisão, ria de qualquer bobagem, permanecia impassível diante de qualquer tragédia. Depois sentia vazio, sentia que sua vida não tinha sentido e não sabia porque chorava e sofria de dor de cabeça, e então "preciso me acalmar", dizia. Esforço inútil: novamente estava na frente da televisão vendo algum imbecil fazer gracinhas porque "não dá pra levar a vida tão a sério", e depois, inexplicavelmente vinha o desespero. Pegava um pano, limpava coisas que já estavam limpas. Impossível: o tempo é muito grande para que se tente matá-lo assim tão futilmente. Que perturbação ver uma pessoa bater-se de forma tão estúpida... O próprio Buda acabaria rangendo os dentes e desfazendo seu lótus para rolar no colchão até o amanhecer.
Foi então que percebi, finalmente: ela não existe. Não existe, é o mesmo que nada. E a velhinha que passa os dias sentada na cadeira em frente à casa no fim da rua? Acena para os passantes, informa-lhes gratuitamente que faz frio ou calor... Ela não existe, sem dúvida. Eu existo? Nada existe. Quanta paz nessa nova descoberta!
Logo em seguida, um bebê começou a chorar. Ele não parava. "Ele não vai parar", disse a mãe que o segurava nos braços. O pai ouvia com expressão de quem teve o cérebro comido por aquele choro insistente. O choro continuou, enchendo de existência aquele nada tão desejado. O choro do bebê, um cachorro latindo longe na madrugada, a gastrite: o nada foi apenas um sonho breve, afinal.
Mas tudo bem.
Eu já estava cansado depois de andar tanto tempo debaixo de sol sem que nada acontecesse. Resolvi parar em uma praça, que estava quase vazia e tinha bastante árvores fazendo sombra. Me sentei em um dos bancos e logo meu olhar se fixou em uma das pedras da calçada. Aos poucos o silêncio começou a preencher minha mente e os contornos da pedra começaram a se dissolver, ao mesmo tempo que o aspecto visível de sua textura se tornou mais nítido.
Em seguida, uma voz surgiu e minha percepção do som das palavras, da intensidade com que elas eram ditas e depois iam sumindo, fez parecer que essas palavras ditas eram análogas às pedras. Ou seja, elas eram como bolhas que iam se enchendo sozinha no ar, cresciam e estouravam. "As letras são um delírio completo", pensei. As palavras continuavam, seus limites primeiro eram claros, depois se desfaziam. Era uma mulher brincando com uma menina no balanço da praça. Ela dizia para a menina frases alegres repetidas, que eram como pedras de calçada.
Claro, isso acontece porque os limites das coisas, sua extensão, sua textura, só são óbvios quando eu olho distraidamente para as coisas. Olho distraidamente, enquanto penso em outras coisas. Superficialmente, tenho certeza de que tudo é o que é, como sempre foi. Depois, no entanto, de respirar fundo, encontrar os silêncios da mente, alinhar minha coluna perpendicularmente entre o chão e o céu, essas coisas, as pedras e as palavras, passaram a se apresentar com seus limites dissolvidos. Uma pedra e outra pedra, o mato que crescia entre suas frestas, as palavras da moça, a própria moça, o ar... havia uma continuidade entre essas coisas todas. Onde acabava uma e começava outra, existia apenas um contorno esfumado, poroso.
"Isso resolve o que?", pensei. Nada. Então tudo novamente ficou certo.

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