segunda-feira, 21 de novembro de 2016

As folhas verdes no chão, o álcool e os campos de concentração

É como se fosse uma rampa de vidro pela qual vou tentando subir rastejando. Não tem onde pegar, desliza. De vez em quando jogam lá de cima um pouco de óleo, e daí que não dá mesmo pra subir. Subir pra que? Subir pra onde? Bem no meio dela tem um eixo, como os que tem nas gangorras de parques para crianças. Então quando a subida passa pela suposta metade a coisa vira e de repente percebo com espanto que estou descendo. Descendo, subindo, que diferença faz? Que mal tem?
Isso nunca existiu na vida real. O que existiu, que tinha isso por dentro, como se fosse o esqueleto de um grande animal, foi uma situação cotidiana e ela, por sua vez, era o próprio animal. O animal era o seguinte: entrei no ônibus, novamente - num certo nível, infinitamente - e vi que por todo o chão havia pipocas espalhadas e pisadas. Imaginei que alguém abriu o pacote com muita força, rasgou ele inteiro. Na curva, o ônibus colaborou pra que caísse tudo no chão. Algumas pessoas devem ter sorrido, algumas devem ter rido por dentro, outras fingiram que não viram pra não se comprometer, outras fingiram que não viram pra não constranger aquela pessoa incapaz de abrir um saco de pipocas dentro do ônibus. Eu desconfio até, que ainda algumas pessoas olharam com ódio por terem de lidar com um acontecimento inesperado desses, inconveniente. As pessoas iam entrando no ônibus e pisando nas pipocas, naturalmente.  
Eu ia olhando as árvores que gritavam contra o azul do céu, novamente.
Desci do ônibus e vi dois meninos jogando bola. O pai era o gandula. "Uma vez fui eu que joguei bola assim e o tempo já estava passando sem que eu notasse", eu pensei.
De todo modo, era segunda-feira: é proibido viver, todo mundo sabe disso. "Melhor esperar mais dois ou três dias", mas quando chegar, finalmente, eu não vou querer mais, é claro. Será sempre o Mesmo, ou será sempre o mesmo Acontecer-Desgovernado tendendo ao Mesmo-Mesmo. O Tudo coincidindo com o Nada, a Qualquer-Coisa coincidindo com a Coisa-Obviamente-Provável.
Bom, por onde que a gente começa de novo, então? Pode ser escrevendo, nesse caso. "Pra que?" eu poderia pensar. Qualquer coisa que eu escreva só vai reforçar a ideia de que eu sou uma coisa que precisa tornar-se outra. Claro, isso acontece, a princípio, porque vi muito filme americano. O fato, no entanto, é que todo mundo viu muito filme americano, a ponto de que, num certo nível, o que parece é, inclusive um pouco até quase o fundo. Quase...
Às sete da manhã eu acordei antes do despertador. Acordei pacificamente até que, alguns segundos depois me lembrei dos pesadelos. Eram pesadelos cheios de sangue e coisas mal encaixadas. Fazer o que... É preciso sair da cama. "Que eu vou fazer hoje?" "Saber, enfim, que eu sou o que eu sou, de todo modo, é libertador", pensei, em seguida "não vou ser outra coisa. Não é possível e não resolveria nada mesmo. Tudo está bem." Isso, é claro, num certo nível. Tem momentos da vida que eu acredito que se eu entendo o que é O Certo, esse certo se faz por consequência e, além do mais, na totalidade. Criancice. Isso quer dizer, então, que em outro lugar, no estômago, eu acho, eu continuava acreditando na necessidade de reformar uma coisa aqui, outra ali, fazer isso e aquilo de um jeito mais bem feito, e aí sim! Aí sim tudo ficaria sob controle. Essas convicções saem do estômago e se irradiam pelo corpo como uma agressão misteriosa. Elas existem, sim, é preciso reconhecer, embora elas, atualmente, batam no Eu profundo e retornem, momentaneamente, ao ponto de onde vieram. Ficam lá, pacificas, enquanto o Eu profundo se expande. Depois acabo me distraindo porque eram sete da manhã, céu azul. Os carros passavam com muita velocidade, os ônibus cheios de gentes. Um motorista teve um segundo de vacilo e não viu o sinal esverdear-se. O motorista de trás esmurrou a buzina como se estivesse se vingando dos próprios pais que o puseram, sem seu consentimento, nesse mundo e, consequentemente, no meio do trânsito que leva Para-lugar-nenhum.
Que eu faço agora? "Eu fiz meu melhor e ele não foi o bastante". Será sempre isso? Sem dúvida, enquanto o parâmetro de avaliação do Melhor e do Bastante forem... [será que eu devia ter inventado alguma coisa pra completar esse argumento de forma coerente?]. Ainda tem o Fazer... "eu fiz"...
A não ser que se queira dar uma de bonitinho, é preciso entender - e aceitar - que sempre acaba no meio. Aliás, sempre começa no meio.
Desci do ônibus e voltei pra casa.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O atravessamento

Ela ia de um lado para outro, ajeitava uma coisa aqui, outra ali. Passava na frente da televisão, ria de qualquer bobagem, permanecia impassível diante de qualquer tragédia. Depois sentia vazio, sentia que sua vida não tinha sentido e não sabia porque chorava e sofria de dor de cabeça, e então "preciso me acalmar", dizia. Esforço inútil: novamente estava na frente da televisão vendo algum imbecil fazer gracinhas porque "não dá pra levar a vida tão a sério", e depois, inexplicavelmente vinha o desespero. Pegava um pano, limpava coisas que já estavam limpas. Impossível: o tempo é muito grande para que se tente matá-lo assim tão futilmente. Que perturbação ver uma pessoa bater-se de forma tão estúpida... O próprio Buda acabaria rangendo os dentes e desfazendo seu lótus para rolar no colchão até o amanhecer.
Foi então que percebi, finalmente: ela não existe. Não existe, é o mesmo que nada. E a velhinha que passa os dias sentada na cadeira em frente à casa no fim da rua? Acena para os passantes, informa-lhes gratuitamente que faz frio ou calor... Ela não existe, sem dúvida. Eu existo? Nada existe. Quanta paz nessa nova descoberta!
Logo em seguida, um bebê começou a chorar. Ele não parava. "Ele não vai parar", disse a mãe que o segurava nos braços. O pai ouvia com expressão de quem teve o cérebro comido por aquele choro insistente. O choro continuou, enchendo de existência aquele nada tão desejado. O choro do bebê, um cachorro latindo longe na madrugada, a gastrite: o nada foi apenas um sonho breve, afinal.
Mas tudo bem.
Eu já estava cansado depois de andar tanto tempo debaixo de sol sem que nada acontecesse. Resolvi parar em uma praça, que estava quase vazia e tinha bastante árvores fazendo sombra. Me sentei em um dos bancos e logo meu olhar se fixou em uma das pedras da calçada. Aos poucos o silêncio começou a preencher minha mente e os contornos da pedra começaram a se dissolver, ao mesmo tempo que o aspecto visível de sua textura se tornou mais nítido.
Em seguida, uma voz surgiu e minha percepção do som das palavras, da intensidade com que elas eram ditas e depois iam sumindo, fez parecer que essas palavras ditas eram análogas às pedras. Ou seja, elas eram como bolhas que iam se enchendo sozinha no ar, cresciam e estouravam. "As letras são um delírio completo", pensei. As palavras continuavam, seus limites primeiro eram claros, depois se desfaziam. Era uma mulher brincando com uma menina no balanço da praça. Ela dizia para a menina frases alegres repetidas, que eram como pedras de calçada.
Claro, isso acontece porque os limites das coisas, sua extensão, sua textura, só são óbvios quando eu olho distraidamente para as coisas. Olho distraidamente, enquanto penso em outras coisas. Superficialmente, tenho certeza de que tudo é o que é, como sempre foi. Depois, no entanto, de respirar fundo, encontrar os silêncios da mente, alinhar minha coluna perpendicularmente entre o chão e o céu, essas coisas, as pedras e as palavras, passaram a se apresentar com seus limites dissolvidos. Uma pedra e outra pedra, o mato que crescia entre suas frestas, as palavras da moça, a própria moça, o ar... havia uma continuidade entre essas coisas todas. Onde acabava uma e começava outra, existia apenas um contorno esfumado, poroso.
"Isso resolve o que?", pensei. Nada. Então tudo novamente ficou certo.