sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Anotações antigas de leituras esquecidas

Outro dia eu encontrei, no meio das minhas coisas, anotações feitas há exatamente um ano atrás. Como não poderia deixar de ser, algumas convicções que naquele momento pareciam definitivas se desfizeram. Algumas previsões, por outro lado, acabaram se tornando, espantosamente, a realidade.

"Enquanto o mundo segue consumindo-se a si mesmo levado por uma espécie notadamente perversa de loucura, eu me permito, mais uma vez, sentar à sombra, em meditação. Daqui a não muito tempo haverá, sem dúvida, quem diga que eu estou me perdendo.
Abri o livro e li algumas páginas.
Que surpresa eu tive quando notei que minha leitura das angústias daquele Mathieu complexo e prisioneiro de si mesmo, saído da cabeça de Jean-Paul Sartre, dessa vez não chegou a me afetar. Interrompi a leitura e fiquei olhando o mar enquanto tentava entender qual a razão para que agora, sentado na areia, debaixo de um coqueiro isolado, a beleza trágica daquela literatura perigosa não se convertesse na dor física de estar diante de um beco sem saída. Sem saída apesar de se saber muito bem do que ele é feito. Fechava o livro e seguia andando mais um pouco. A cada parada retomava a leitura e cada vez mais compreendia que, enfim, eu deixara de ser Mathieu, e A idade da razão deixara de ser uma narrativa sobre meu próprio destino.
Minha satisfação aumentou ainda mais quando, algumas páginas depois, chegou a vez do próprio Mathieu superar o emaranhado de forças obscuras que o condenavam à sua situação aparentemente inevitável. Esse acontecimento se deu num cabaret em que estavam o personagem e seus amigos. Entre eles, pontuando a amizade, existiam ódios velados, constrangimentos, ressentimentos, que constituíam minúsculas mas intransponíveis distâncias.
Quando Mathieu e Ivitch finalmente ficaram a sós na mesa, iniciou-se uma daquelas conversas complexas em que nenhuma das partes é capaz de ir direto ao assunto. Ivitch, já bêbada, começou a demonstrar implicâncias com a mulher sentada à mesa vizinha e, para provocá-la, pegou um canivete com o qual fez um corte profundo na palma da própria mão.
Ela deixou que o sangue escorresse e aproveitou também para ridicularizar Mathieu, ao ver seu desespero diante da atitude sem explicação. Impelido pela situação de absurdo generalizado, Mathieu então tomou de Ivitch o canivete para cravá-lo, dessa vez, em sua própria mão. Nesse ponto Sartre acrescenta que, nesse momento ocorreu no bar uma grande agitação decorrente do escândalo causado na "opinião pública" devido às atitudes encenadas por seus personagens. "Está vendo! Não há nada de especial, qualquer um pode fazê-lo!", gritou Mathieu mostrando a mão quase atravessada pela lamina. Agora quem estava em choque era Ivitch, "por que você fez isso?!" dizia, enquanto o ajudava a retirar o canivete. O sangue se misturava e, por fim, os dois riam. Em meio àquela atitude extrema e irrefletida, todas as complexidades e rancores se desfizeram. Ao se verem, por um instante, liberados, pela exposição ao absurdo, dos constrangimentos - que na verdade são os elementos definidores das personalidades individuais no estado de normalidade - fez-se, espontaneamente o riso como expressão da descoberta de algo profundo e comum.
Eu ainda não sei o que virá depois disso, mas se existe equivalente dessa construção literária na vida real, eu diria que, o Mundo tende a pressionar o novo estado de espírito de volta aos limites anteriores à epifania, neutralizando as potência transformadoras por ela desencadeadas. Com isso, aquele que se acreditava finalmente livre se verá mais uma vez frustrado, - ao ver retornarem os ódios e ressentimentos necessários à manutenção das posições que foi levado a ocupar em sua existência social - até que seja capaz de ir realmente mais longe."