sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Restos de dias passados .3

Abri os olhos. Alguns segundos se passaram, ouvi os carros passando lá fora. No meio deles, nada além de alguns pássaros. Entendi que estava acordado. O sonho não estava bom, nem ruim, mas o quarto desfocado que eu via antes de colocar os óculos, eu achava que estava pior. Assim que eu saísse da cama, minha realidade consistiria em não mais que algumas poucas atividades sem muita conexão entre si. Aos poucos elas foram surgindo na mente como projeto de dia. "Vou comprar pão, fazer café. Depois preciso ver meus e-mail. Posso ler um pouco, se tiver paciência."
Todos os dias são assim. Outro dia uma moça me disse, "você tem que trabalhar oito horas, que nem todo mundo!" Eu ri, ela riu.
E se eu fosse cego? e se eu tivesse uma perna, um braço a menos? alguma doença bem filha da puta dessas que as pessoas acabam tendo apesar de tudo. Eu não tenho nada disso, eu devia estar grato. Mas grato a quem? Se eu tivesse alguém a quem agradecer, ou alguém a quem reclamar... é para isso que existe a literatura, para suprir a falta de ter com quem reclamar. Os serviços de atendimento ao consumidor criados pela sociedade estão, é claro, em total descompasso com a vida. Na vida eu não posso devolver nada, trocar uma coisa por outra... O que veio pra mim veio pra mim e acabou, parece.
Mais tarde, o almoço. O de sempre. Por mais que mude a carne, o acompanhamento, o tempero, tudo, no fim, é o de sempre. Sem gosto, pra nada, qualquer coisa por puro impulso, um hábito, no mesmo horário, na mesma mesa. E se eu fosso uma dessas pessoas que não tem o que comer? Eu devia estar grato.
Durante esse almoço eu fui pensando que a palavra futilidade irá cair em desuso. Em breve não haverá mais nada que ela possa nomear que seja possível distinguir do todo da realidade. Por que as pessoas falam as coisas que falam? Por mais que mudem os temas, por mais que mudem as palavras. Comentários sem propósito, falatório inútil. Sempre. Preenchem o espaço a troco de nada.
Quando acabou o almoço eu percebi que as pessoas se dividem em dois grupos: um é o dos coadjuvantes, o outro é o dos figurantes.
Acordei novamente e dessa vez fui pra rua, esperando que o movimento frenético das coisas na direção do nada pudesse me distrair. Não funcionou.
Um ônibus ia se aproximando cheio de violência. Dentro dele os velhos e as crianças estavam sendo jogados de um lado para o outro, rolavam pelo chão, metiam suas caras nas janelas. As pessoas sentadas não davam lugar a estes pobres fracos. O motorista ia afundando o pé no acelerador, e inconscientemente tentava capotar o ônibus ao fazer as curvas. Sua expressão de apatia estava vagamente voltada para frente para que pudesse dar atenção aos semáforos, aos pontos de parada, aos sinais dados pelas pessoas de dentro e de fora, etc. Ele seguia com expressão de apatia e descaso pela vida dos outros. Mas também, coitado, ele ganha uma miséria pra fazer um serviço tão desgraçado. Deviam dar a ele 1 milhão por mês, que nem dão pro Neymar jogar bola. Daí ele ia poder comprar uma cobertura em Copacabana, uma mansão sei lá onde, cocaína de qualidade, prostitutas caras, carros caros. Não ia mais dirigir ônibus, nem subir em ônibus. Ia abrir uma empresa, contratar pobres coitados pra chamar de vagabundos, pagar miséria, arrancar o couro. Fazer um moicano, pintar de loiro. Ia acabar se suicidando com uma arma cara, cheio de vazio.
Um passo em falso e eu entrei bem na frente desse ônibus. A batida foi tão forte que minha cabeça foi partida ao meio, deixando escapar sobre o asfalto um monte de coisas. O ônibus seguiu seu caminho. Os pedestres olhavam incomodados com aquele evento imprevisível bem ali no meio da rua, depois continuavam indo para onde eram levados a ir. Me levantei e percebi que conseguia respirar melhor agora. "Você ta querendo chamar a atenção, né?!" gritou uma velhinha com cara de quem não aguenta mais.
Encontrei uma boa sombra de árvore e me sentei debaixo dela. O tempo passou.
O sol já estava quase nascendo, e eu resolvi esperar para ver como seria. Tranquilamente nasceu amarelecendo no céu. As poças d'água secaram, os pássaros cantaram no meio dos carros. Muito estranho, eu já não me lembrava do que tinha me levado até ali. "Devo concluir que amanhã sempre será outro dia?"
Levantei e voltei para casa. No caminho comprei um sorvete, um café, um pastel, uma coxinha, uma paçoquinha e uma cerveja.