domingo, 21 de agosto de 2016

Restos de dias passados 2

O rapaz da mesa ao lado estava escrevendo em seu caderno. Do lugar onde eu estava eu espiava uma das páginas escritas e nela estava o seguinte:

"Assim que a chuva deu uma primeira trégua eu corri para a rua. Consegui andar algumas quadras, estava frio, voltou a chover. Me refugiei durante algum tempo, depois finalmente peguei o ônibus. Chegando ao ponto foi só descer e correr, procurar de novo alguma proteção contra a água que cai do céu pra fazer brotar da terra um pouco mais dessa vida.
Tudo estava molhado, não tinha lugar onde sentar. Mesmo assim dormi e sonhei que estava entrando no consultório onde recebem as pessoas que pretendem se curar de suas loucuras. Uma mulher que se julgava inteiramente normal, estava contando para a recepcionista e para quem mais quisesse ouvir, coisas de sua vida e essas coisas não tinham nenhum interesse, não era possível. A recepcionista que a ouvia tinha o olhar de quem se encontra à beira de um colapso nervoso.
Saí e tive que enfrentar mais chuva.
Já era hora de almoçar e para comer tinha salsicha acebolada com purê. Impossível não lembrar que salsichas são feitas de frangos defeituosos que eles colocam inteiros dentro de trituradores. Para dar liga na massa usam papelão de caixas que encontram largadas na rua, no lixo, e pra deixar gostoso finalizam acrescentando corante e sal. Uma coisa dessas só poderia ser comida por pessoas ignorantes, negligentes, cínicas, pobres, autodestrutivas e apressadas. Bem, é justamente o que somos. Tive a ideia de comer também a salada para compensar. O sabor era indiferente.
Acordei a tempo de pegar o ônibus de volta para casa. De novo lotado. O caminho todo em pé carregando bagagens cheias de coisas inúteis e indispensáveis. O trânsito estava todo emperrado. "Vai demorar", pensei.
Chegar em casa foi um enorme alívio. A sensação de fechar a porta e deixar o mundo do lado fora. No aconchego do quarto a chuva que continuava caindo enorme na rua agora me ajudava a dormir.
Quando amanheceu, o dia já chegou desabando bem por cima do meu corpo inerte, que insistia em permanecer de baixo das cobertas. Só que estava calor."

O rapaz deixou a escrita por alguns instantes. Olhava fixo para um ponto qualquer na parede. Ele estava com cara de quem não sabe o que fazer no mundo. Em segredo, reprovei essa atitude e percebi que ele estava pensando o seguinte:

"Por que eu escrevo essas coisas tão horríveis? Eu olho pro papel e fico pensando que eu queria inventar ideias bonitas para redimir a humanidade. É uma ideia antiga, com certeza, pretensão de milhões de desavisados que viveram e morreram ao longo da história toda, muitos sem reconhecimento nenhum.
O carro na frente dos bois, o passo maior que a perna. Essas imagens me invadem. Uma torre construída sem alicerce, às pressas; a base mais estreita que os pavimentos mais altos. Ela vai desabando por dentro. É feita de material poroso revestido com coisas colocadas do lado de fora para mostrar que dessa vez ficou bonito, dessa vez está feito bem feito. Uma grande obra, inigualável.
E então me arrependo do pensamento doloroso que novamente surgiu não sei de onde.
Eu queria ter escrito algo que mostrasse a compreensão admirável de que o mal não existe, de que a vida é um grande fluxo de acontecer e que é preciso simplesmente desapegar desse mal hábito do pesadume. Mas isso tem que ser logo, tem que ser hoje, tem que ser claro e transparente. Um monumento à superação da fraqueza... Mais uma vez me apresso e acredito estar na posição de um santo que olha com compaixão e bondade para os tropeços cegos dos outros! Dos outros, os meus se acabaram, definitivamente!
Descubro então minha própria espera pela compaixão. Sede de sofrer mais, sofrer até que me estendam a mão, até que não possam evitar o sentimento da obrigação de acolher o pobre coitado. Alguém vai rir - eu já sei - é inevitável, "coitadinho do coitado", e eu vou rir também e dizer que estava só brincando e que na verdade isso tudo é bobagem.
Não foi à toa que a mente humana criou a imagem do diabo. Às vezes eu vejo na rua o escárnio esculpido em alguma cara miserável, vermelha de álcool, babando impropérios inaudíveis aos carros que passam de olhos fechados.
O vazio continua no mesmo lugar, intocado. Ele aumenta, na verdade, é claro. Sem nenhuma razão controlável, tudo vai se desfazendo, o que parecia estar bem feito se dispersa, liberando novos espaços para o nada. "

Achei todas essas conclusões uma vergonha. Me levantei e paguei a conta, o rapaz continuou lá, com a mesma cara de cachorro abandonado.
O tempo passou e ele continuou na mesma mesa, diante de seu caderno de anotações. Eu já estava muito longe dali, tinha até chegado em casa.
Quando finalmente ele se levantou para ir embora, todos até os funcionários tinham também deixado o bar e apagado as luzes. Ao tentar sair o rapaz deu com a cara bem na porta fechada, que era transparente, de vidro. Como ele podia ver o lado de fora, não pode entender imediatamente o que impedia sua saída e tentou novamente. Seus dentes sangraram e mancharam o vidro, fazendo com que ficasse claro o que estava acontecendo. "Entre mim e o lado de fora existe uma porta de vidro. Acho que terei que quebrá-la", ele pensou, mas, em seguida notou que ela estava destrancada. O rapaz então riu de sua própria estupidez. Era tão óbvio. Sentiu um alívio por perceber que não estava louco e que também não estava preso no bar até o amanhecer.
Riu novamente, lembrou de seu dia, de seus dilemas literários e acabou ficando um pouco melancólico de novo. Nada demais.
Interrompeu seus devaneios, e enfim resolveu sair. Mais sangue e um dente quebrado. Deu de novo com a cara no vidro.



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