quarta-feira, 20 de julho de 2016

Restos de dias passados

Primeiro eu pensei que quando olho nos olhos das pessoas na rua, noto que eles são como janelas de uma casa abandonada. Em seguida, pensei que essa percepção devia ser um engano, a ser esclarecido a seu tempo.
Entrei no ônibus e fiquei esperando que ele saísse do lugar. Pela janela eu via, lá fora, um homem que sorria como uma criança enquanto mijava na rua logo após ter baixado suas calças bem na frente de todos os passantes. Alguns fingiam que não estavam vendo, outros não fingiam nada. Veio correndo carregada de sacolas a mãe do rapaz, "você não pode fazer isso assim aqui na frente de todo mundo! já falei!" e subiu as calças do filho com a mão que estava livre. Ele não parou nem de rir nem de mijar. Bem atrás deles o verde das árvores estava emoldurado pelo azul ardido do céu, como numa pintura.
Eu peguei uma caneta, um papel e anotei o seguinte: "Às vezes o dia parece um filme de terror. Outras vezes parece outra coisa. Quanto mais beleza há em meio ao terror, e quanto mais eu sei ser efêmera essa beleza, mais terror há no terror. Quanto mais de longe se pode ver o quão perto se encontram terror e beleza mais um acaba se passando pelo outro."
O ônibus continuava parado. Decidi descer e ir andando mesmo.
No caminho fui refletindo sobre minha anotação, sem ter certeza se eu deveria guardar ou jogar fora. No fundo, o problema era o mesmo de sempre, "e se fosse eu o menino mijando na rua? e se fosse eu a mãe do menino? do que depende a diferença entre eu ser eu e eu ser eles?".