terça-feira, 14 de junho de 2016

Contramão

"Cada vez mais eu não poso deixar de ter a mais profunda certeza de que sou a única pessoa no mundo capaz de entender o que realmente acontece. " Foi isso que ele declarou enquanto secava os copos atrás do balcão, sem a menor alteração na expressão. Eu segurei o riso e ele completou, "Ou é isso ou então minha mente produziu uma forma tão enorme de engano, que me coloca na posição de ser aquele que comete, sem nenhuma dúvida, o maior erro do mundo", e pegou mais copos sujos deixados sobre a pia pelos clientes.
Em seguida, ele percebeu que eu não tinha mesmo dinheiro para pagar pelo café e disse que não tinha importância porque, de um ponto de vista capaz de ultrapassar a banalidade das coisas cotidianas, aquela nossa conversa, o café, o dinheiro, eram o mesmo que se nenhum de nós tivesse sequer saído de casa naquele dia, ou que ninguém houvesse dito nada, ou que nem meus pais nem os dele tivessem tido a oportunidade de fazer-nos nascer no mundo. Baseado nesse argumento, ele não só dispensou o dinheiro que eu lhe devia, como me serviu mais um café inteiramente grátis. Diante disso, eu achei que seria importante testar superficialmente a realidade daqueles acontecimentos. Do meu lado estava um cachorro amarelo e ele parecia querer muito beber café. Eu coloquei a xícara no chão e ele bebeu enquanto balançava o rabo.
Ao se deparar com essa situação, o rapaz que enxugava os copos sofreu um conflito na mente.
Ele percebeu que caso ele se recusasse a separar no seu entendimento a realidade em unidades imaginárias pequenas ligadas por fios invisíveis, cada qual feito de um material específico, então, sempre lhe faltaria a palavra mais adequada para dizer de forma compreensível seus pensamentos, e isso acabaria causando angústia dentro de seu estômago e do cérebro. Bom, por outro lado, ele percebia que a paz de espírito somente poderia ser produzida uma vez que sua visão de mundo realizasse a volta necessária para que ele se tornasse capaz de assistir e esperar que o cachorro bebesse todo o café sem que começasse, contra sua intenção, a brotar por detrás de seus olhos, duplicações e extensões daquele acontecimento.
Assim que concluiu a reflexão, notei que foi soprado pra dentro de seu ouvido, como que pelo próprio Deus, o seguinte: "seu pensamento sobre o mundo é todo muito certo. No entanto, quanto mais ele se torna autoconsciente mais ele contradiz a si mesmo. A única forma de realizá-lo de forma plenamente coerente, portanto, será eliminando-o, o que, obviamente, não poderá ser resultante de nenhum projeto porque, nesse caso, estaria necessariamente implicado um procedimento de avaliação constante das relações entre avanço e retrocessos - Isso levaria a coisa toda à falência." Foi isso e depois parou.
O rapaz, então, começou a lavar mais copos e eu pensei que se naquele momento ele pacificamente rasgasse seu corpo com uma das facas deixadas sobre o balcão, seu sangue desceria pelo ralo junto com água e sabão. Essa atitude, segui pensando, naquele momento, não seria, talvez, acompanhada de nenhuma dor, mas seria condição inevitável da santificação de seu ser, que enfim superaria a dualidade corpo-mente. Mas, logo em seguida, achei melhor não, que melhor seria que ele continuasse lavando copos, e foi o que ele continuou fazendo mesmo.