quinta-feira, 28 de abril de 2016

Inimigos imaginários

Essa coisa que me toma de repente é como uma corrente marítima, como ondas que se movem de dentro pra fora. Forçado não sei por qual crença a permanecer sentado no mesmo lugar em quanto o dia passa, meus nervos vão ficando completamente eletrizados. Meu corpo sofre de uma epilepsia latente, quer se sacudir, gritar, comer, morder as coisas, quebrar as coisas. Não há, diferente do que pode parecer, nisso nenhum ódio. O que sinto é uma avalanche de impulsos frenéticos que me impelem a fazer, contra minha vontade, um monte de coisas e garantir que todas elas sejam bem feitas e rendam bons frutos. Eu faço um pouquinho de cada uma dessas coisas o dia inteiro. Vou revezando, primeiro uma, depois outra, antes que a dedicação exclusiva a uma única acabe realizando seu potencial - existente na mesma medida em todas elas - de me matar de tédio.
Todos os dias depois do almoço chega o momento em que me canso um pouco, fico cheio de despropósito. Nesse momento eu saio para dar uma volta pela cidade. À essa altura eu já sei bem que por mais ruas que eu percorra, nada, nem um sorvete, nem uma cerveja, nem um café, nem mesmo um pastel, tem o poder de dissipar esse cansaço, esse tédio.
Isso acontece porque não importa com o que eu me entretenha, no fim das contas, mesmo que indiretamente, mesmo que da boca pra fora sendo contra, enquanto eu jogo as regras do jogo, em algum momento eu terei que retornar ao ponto onde estava. Terei que me sentar diante do computador, abrir um caderno, tomar notas, esboçar cronogramas, orçamentos miseráveis, elaborar planos de fuga.
E se eu tivesse, mais uma vez ainda, um trabalho de verdade? Então eu estaria pior, embora a rotina acabasse me levando a sentir como se eu não existisse, ou que existisse menos, ou seja, que eu existisse obviamente, sem duplicações simbólicas, de forma indubitável, prática, rumo ao fim de semana, "faço, logo, existo".
Outro dia, na mesa de um bar, acabei ouvindo conversa alheia. O rapaz dizia a um homem, que pela calvície devia ser seu pai: "Acredito, no ponto em que me encontro, que daqui em diante, pra ser sincero, devo enrolar e enrolar bastante, e assim o tempo vai passando. Quando parecer que já perdi muito tempo na vida, quando for a hora de mergulhar no arrependimento e no desespero, então será também, julgo eu, tarde demais e tempo de partir." O homem calvo continuou apenas olhando o filho, que aproveitou para concluir: "Chegado o momento, eu irei, é claro, ainda que tomado por essas doenças tristes e incuráveis que têm os velhos, escalar a Montanha Sagrada em busca da iluminação."
Ao ouvir um relato dessa natureza, pedi no balcão um torresmo e mais um café, se me lembro bem. Enquanto mastigava eu pensei, "está muito bem, mas quando vier a ditadura, o velho sábio será capturado do topo da Montanha Sagrada, denunciado talvez por seus próprios parentes ainda vivos e decepcionados. Sob tortura terá que explicar do que fugia, em seguida sendo forçado a revelar o esconderijo de seus supostos comparsas subversivos. Já sob a ditadura do proletariado, acabará sendo tomado por isolacionista anti-classista, adepto de ideias reacionárias, praticante de um naturalismo burguês. Não escapará ao fuzilamento sumário.
Esse tipo de devaneio acaba, afinal, consumindo muito a mente. É daí que brotam aquelas ondas frenéticas. O tempo passa enquanto aqui dentro são produzidos pensamentos que têm vida própria. Frequentemente, eu os alimento com mais literatura, em busca de que seja possível fazê-los sobrar no mundo. É importante que os pensamentos sobrem no mundo sem que seja preciso dar sobre eles maiores explicações, esclarecer detalhes, revelar significados ocultos.  

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Imagens de sonhos

Era como se toda vez que eu tentasse dormir alguém imediatamente acendesse a luz e eu não conhecesse nenhuma forma para apagá-la eu mesmo, a não ser quebrando a lampada, e que quebrar a lampada pudesse causar algum tipo de transtorno incalculável.

Nunca mais será possível, parece, descrever os pássaros, as árvores, o ruído da chuva caindo sobre o telhado. Necessariamente, ao aroma do café passado no início de uma tarde ensolarada estará misturada a lembrança de tudo o que não foi e que poderia ter sido.

Depois eu tive um sonho: As palmeiras imperiais tem muitos metros de altura e mais de cem anos de vida. Uma delas tinha bem perto da base um buraco que foi cuidadosamente acimentado pela prefeitura. Fico pensando que , em vez disso, seria preferível deixá-lo aberto para que em seu interior pudessem acomodar-se bichos, famílias, estudantes, bandidos e até freiras. Seria uma boa oportunidade de abrigar do frio, do calor e da chuva esses viventes inúteis.
Em seguida a palmeira acabaria apodrecendo inteiramente de dentro para fora e desabando bem no meio da rua.