segunda-feira, 21 de novembro de 2016

As folhas verdes no chão, o álcool e os campos de concentração

É como se fosse uma rampa de vidro pela qual vou tentando subir rastejando. Não tem onde pegar, desliza. De vez em quando jogam lá de cima um pouco de óleo, e daí que não dá mesmo pra subir. Subir pra que? Subir pra onde? Bem no meio dela tem um eixo, como os que tem nas gangorras de parques para crianças. Então quando a subida passa pela suposta metade a coisa vira e de repente percebo com espanto que estou descendo. Descendo, subindo, que diferença faz? Que mal tem?
Isso nunca existiu na vida real. O que existiu, que tinha isso por dentro, como se fosse o esqueleto de um grande animal, foi uma situação cotidiana e ela, por sua vez, era o próprio animal. O animal era o seguinte: entrei no ônibus, novamente - num certo nível, infinitamente - e vi que por todo o chão havia pipocas espalhadas e pisadas. Imaginei que alguém abriu o pacote com muita força, rasgou ele inteiro. Na curva, o ônibus colaborou pra que caísse tudo no chão. Algumas pessoas devem ter sorrido, algumas devem ter rido por dentro, outras fingiram que não viram pra não se comprometer, outras fingiram que não viram pra não constranger aquela pessoa incapaz de abrir um saco de pipocas dentro do ônibus. Eu desconfio até, que ainda algumas pessoas olharam com ódio por terem de lidar com um acontecimento inesperado desses, inconveniente. As pessoas iam entrando no ônibus e pisando nas pipocas, naturalmente.  
Eu ia olhando as árvores que gritavam contra o azul do céu, novamente.
Desci do ônibus e vi dois meninos jogando bola. O pai era o gandula. "Uma vez fui eu que joguei bola assim e o tempo já estava passando sem que eu notasse", eu pensei.
De todo modo, era segunda-feira: é proibido viver, todo mundo sabe disso. "Melhor esperar mais dois ou três dias", mas quando chegar, finalmente, eu não vou querer mais, é claro. Será sempre o Mesmo, ou será sempre o mesmo Acontecer-Desgovernado tendendo ao Mesmo-Mesmo. O Tudo coincidindo com o Nada, a Qualquer-Coisa coincidindo com a Coisa-Obviamente-Provável.
Bom, por onde que a gente começa de novo, então? Pode ser escrevendo, nesse caso. "Pra que?" eu poderia pensar. Qualquer coisa que eu escreva só vai reforçar a ideia de que eu sou uma coisa que precisa tornar-se outra. Claro, isso acontece, a princípio, porque vi muito filme americano. O fato, no entanto, é que todo mundo viu muito filme americano, a ponto de que, num certo nível, o que parece é, inclusive um pouco até quase o fundo. Quase...
Às sete da manhã eu acordei antes do despertador. Acordei pacificamente até que, alguns segundos depois me lembrei dos pesadelos. Eram pesadelos cheios de sangue e coisas mal encaixadas. Fazer o que... É preciso sair da cama. "Que eu vou fazer hoje?" "Saber, enfim, que eu sou o que eu sou, de todo modo, é libertador", pensei, em seguida "não vou ser outra coisa. Não é possível e não resolveria nada mesmo. Tudo está bem." Isso, é claro, num certo nível. Tem momentos da vida que eu acredito que se eu entendo o que é O Certo, esse certo se faz por consequência e, além do mais, na totalidade. Criancice. Isso quer dizer, então, que em outro lugar, no estômago, eu acho, eu continuava acreditando na necessidade de reformar uma coisa aqui, outra ali, fazer isso e aquilo de um jeito mais bem feito, e aí sim! Aí sim tudo ficaria sob controle. Essas convicções saem do estômago e se irradiam pelo corpo como uma agressão misteriosa. Elas existem, sim, é preciso reconhecer, embora elas, atualmente, batam no Eu profundo e retornem, momentaneamente, ao ponto de onde vieram. Ficam lá, pacificas, enquanto o Eu profundo se expande. Depois acabo me distraindo porque eram sete da manhã, céu azul. Os carros passavam com muita velocidade, os ônibus cheios de gentes. Um motorista teve um segundo de vacilo e não viu o sinal esverdear-se. O motorista de trás esmurrou a buzina como se estivesse se vingando dos próprios pais que o puseram, sem seu consentimento, nesse mundo e, consequentemente, no meio do trânsito que leva Para-lugar-nenhum.
Que eu faço agora? "Eu fiz meu melhor e ele não foi o bastante". Será sempre isso? Sem dúvida, enquanto o parâmetro de avaliação do Melhor e do Bastante forem... [será que eu devia ter inventado alguma coisa pra completar esse argumento de forma coerente?]. Ainda tem o Fazer... "eu fiz"...
A não ser que se queira dar uma de bonitinho, é preciso entender - e aceitar - que sempre acaba no meio. Aliás, sempre começa no meio.
Desci do ônibus e voltei pra casa.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O atravessamento

Ela ia de um lado para outro, ajeitava uma coisa aqui, outra ali. Passava na frente da televisão, ria de qualquer bobagem, permanecia impassível diante de qualquer tragédia. Depois sentia vazio, sentia que sua vida não tinha sentido e não sabia porque chorava e sofria de dor de cabeça, e então "preciso me acalmar", dizia. Esforço inútil: novamente estava na frente da televisão vendo algum imbecil fazer gracinhas porque "não dá pra levar a vida tão a sério", e depois, inexplicavelmente vinha o desespero. Pegava um pano, limpava coisas que já estavam limpas. Impossível: o tempo é muito grande para que se tente matá-lo assim tão futilmente. Que perturbação ver uma pessoa bater-se de forma tão estúpida... O próprio Buda acabaria rangendo os dentes e desfazendo seu lótus para rolar no colchão até o amanhecer.
Foi então que percebi, finalmente: ela não existe. Não existe, é o mesmo que nada. E a velhinha que passa os dias sentada na cadeira em frente à casa no fim da rua? Acena para os passantes, informa-lhes gratuitamente que faz frio ou calor... Ela não existe, sem dúvida. Eu existo? Nada existe. Quanta paz nessa nova descoberta!
Logo em seguida, um bebê começou a chorar. Ele não parava. "Ele não vai parar", disse a mãe que o segurava nos braços. O pai ouvia com expressão de quem teve o cérebro comido por aquele choro insistente. O choro continuou, enchendo de existência aquele nada tão desejado. O choro do bebê, um cachorro latindo longe na madrugada, a gastrite: o nada foi apenas um sonho breve, afinal.
Mas tudo bem.
Eu já estava cansado depois de andar tanto tempo debaixo de sol sem que nada acontecesse. Resolvi parar em uma praça, que estava quase vazia e tinha bastante árvores fazendo sombra. Me sentei em um dos bancos e logo meu olhar se fixou em uma das pedras da calçada. Aos poucos o silêncio começou a preencher minha mente e os contornos da pedra começaram a se dissolver, ao mesmo tempo que o aspecto visível de sua textura se tornou mais nítido.
Em seguida, uma voz surgiu e minha percepção do som das palavras, da intensidade com que elas eram ditas e depois iam sumindo, fez parecer que essas palavras ditas eram análogas às pedras. Ou seja, elas eram como bolhas que iam se enchendo sozinha no ar, cresciam e estouravam. "As letras são um delírio completo", pensei. As palavras continuavam, seus limites primeiro eram claros, depois se desfaziam. Era uma mulher brincando com uma menina no balanço da praça. Ela dizia para a menina frases alegres repetidas, que eram como pedras de calçada.
Claro, isso acontece porque os limites das coisas, sua extensão, sua textura, só são óbvios quando eu olho distraidamente para as coisas. Olho distraidamente, enquanto penso em outras coisas. Superficialmente, tenho certeza de que tudo é o que é, como sempre foi. Depois, no entanto, de respirar fundo, encontrar os silêncios da mente, alinhar minha coluna perpendicularmente entre o chão e o céu, essas coisas, as pedras e as palavras, passaram a se apresentar com seus limites dissolvidos. Uma pedra e outra pedra, o mato que crescia entre suas frestas, as palavras da moça, a própria moça, o ar... havia uma continuidade entre essas coisas todas. Onde acabava uma e começava outra, existia apenas um contorno esfumado, poroso.
"Isso resolve o que?", pensei. Nada. Então tudo novamente ficou certo.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Anotações antigas de leituras esquecidas

Outro dia eu encontrei, no meio das minhas coisas, anotações feitas há exatamente um ano atrás. Como não poderia deixar de ser, algumas convicções que naquele momento pareciam definitivas se desfizeram. Algumas previsões, por outro lado, acabaram se tornando, espantosamente, a realidade.

"Enquanto o mundo segue consumindo-se a si mesmo levado por uma espécie notadamente perversa de loucura, eu me permito, mais uma vez, sentar à sombra, em meditação. Daqui a não muito tempo haverá, sem dúvida, quem diga que eu estou me perdendo.
Abri o livro e li algumas páginas.
Que surpresa eu tive quando notei que minha leitura das angústias daquele Mathieu complexo e prisioneiro de si mesmo, saído da cabeça de Jean-Paul Sartre, dessa vez não chegou a me afetar. Interrompi a leitura e fiquei olhando o mar enquanto tentava entender qual a razão para que agora, sentado na areia, debaixo de um coqueiro isolado, a beleza trágica daquela literatura perigosa não se convertesse na dor física de estar diante de um beco sem saída. Sem saída apesar de se saber muito bem do que ele é feito. Fechava o livro e seguia andando mais um pouco. A cada parada retomava a leitura e cada vez mais compreendia que, enfim, eu deixara de ser Mathieu, e A idade da razão deixara de ser uma narrativa sobre meu próprio destino.
Minha satisfação aumentou ainda mais quando, algumas páginas depois, chegou a vez do próprio Mathieu superar o emaranhado de forças obscuras que o condenavam à sua situação aparentemente inevitável. Esse acontecimento se deu num cabaret em que estavam o personagem e seus amigos. Entre eles, pontuando a amizade, existiam ódios velados, constrangimentos, ressentimentos, que constituíam minúsculas mas intransponíveis distâncias.
Quando Mathieu e Ivitch finalmente ficaram a sós na mesa, iniciou-se uma daquelas conversas complexas em que nenhuma das partes é capaz de ir direto ao assunto. Ivitch, já bêbada, começou a demonstrar implicâncias com a mulher sentada à mesa vizinha e, para provocá-la, pegou um canivete com o qual fez um corte profundo na palma da própria mão.
Ela deixou que o sangue escorresse e aproveitou também para ridicularizar Mathieu, ao ver seu desespero diante da atitude sem explicação. Impelido pela situação de absurdo generalizado, Mathieu então tomou de Ivitch o canivete para cravá-lo, dessa vez, em sua própria mão. Nesse ponto Sartre acrescenta que, nesse momento ocorreu no bar uma grande agitação decorrente do escândalo causado na "opinião pública" devido às atitudes encenadas por seus personagens. "Está vendo! Não há nada de especial, qualquer um pode fazê-lo!", gritou Mathieu mostrando a mão quase atravessada pela lamina. Agora quem estava em choque era Ivitch, "por que você fez isso?!" dizia, enquanto o ajudava a retirar o canivete. O sangue se misturava e, por fim, os dois riam. Em meio àquela atitude extrema e irrefletida, todas as complexidades e rancores se desfizeram. Ao se verem, por um instante, liberados, pela exposição ao absurdo, dos constrangimentos - que na verdade são os elementos definidores das personalidades individuais no estado de normalidade - fez-se, espontaneamente o riso como expressão da descoberta de algo profundo e comum.
Eu ainda não sei o que virá depois disso, mas se existe equivalente dessa construção literária na vida real, eu diria que, o Mundo tende a pressionar o novo estado de espírito de volta aos limites anteriores à epifania, neutralizando as potência transformadoras por ela desencadeadas. Com isso, aquele que se acreditava finalmente livre se verá mais uma vez frustrado, - ao ver retornarem os ódios e ressentimentos necessários à manutenção das posições que foi levado a ocupar em sua existência social - até que seja capaz de ir realmente mais longe."

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Restos de dias passados .3

Abri os olhos. Alguns segundos se passaram, ouvi os carros passando lá fora. No meio deles, nada além de alguns pássaros. Entendi que estava acordado. O sonho não estava bom, nem ruim, mas o quarto desfocado que eu via antes de colocar os óculos, eu achava que estava pior. Assim que eu saísse da cama, minha realidade consistiria em não mais que algumas poucas atividades sem muita conexão entre si. Aos poucos elas foram surgindo na mente como projeto de dia. "Vou comprar pão, fazer café. Depois preciso ver meus e-mail. Posso ler um pouco, se tiver paciência."
Todos os dias são assim. Outro dia uma moça me disse, "você tem que trabalhar oito horas, que nem todo mundo!" Eu ri, ela riu.
E se eu fosse cego? e se eu tivesse uma perna, um braço a menos? alguma doença bem filha da puta dessas que as pessoas acabam tendo apesar de tudo. Eu não tenho nada disso, eu devia estar grato. Mas grato a quem? Se eu tivesse alguém a quem agradecer, ou alguém a quem reclamar... é para isso que existe a literatura, para suprir a falta de ter com quem reclamar. Os serviços de atendimento ao consumidor criados pela sociedade estão, é claro, em total descompasso com a vida. Na vida eu não posso devolver nada, trocar uma coisa por outra... O que veio pra mim veio pra mim e acabou, parece.
Mais tarde, o almoço. O de sempre. Por mais que mude a carne, o acompanhamento, o tempero, tudo, no fim, é o de sempre. Sem gosto, pra nada, qualquer coisa por puro impulso, um hábito, no mesmo horário, na mesma mesa. E se eu fosso uma dessas pessoas que não tem o que comer? Eu devia estar grato.
Durante esse almoço eu fui pensando que a palavra futilidade irá cair em desuso. Em breve não haverá mais nada que ela possa nomear que seja possível distinguir do todo da realidade. Por que as pessoas falam as coisas que falam? Por mais que mudem os temas, por mais que mudem as palavras. Comentários sem propósito, falatório inútil. Sempre. Preenchem o espaço a troco de nada.
Quando acabou o almoço eu percebi que as pessoas se dividem em dois grupos: um é o dos coadjuvantes, o outro é o dos figurantes.
Acordei novamente e dessa vez fui pra rua, esperando que o movimento frenético das coisas na direção do nada pudesse me distrair. Não funcionou.
Um ônibus ia se aproximando cheio de violência. Dentro dele os velhos e as crianças estavam sendo jogados de um lado para o outro, rolavam pelo chão, metiam suas caras nas janelas. As pessoas sentadas não davam lugar a estes pobres fracos. O motorista ia afundando o pé no acelerador, e inconscientemente tentava capotar o ônibus ao fazer as curvas. Sua expressão de apatia estava vagamente voltada para frente para que pudesse dar atenção aos semáforos, aos pontos de parada, aos sinais dados pelas pessoas de dentro e de fora, etc. Ele seguia com expressão de apatia e descaso pela vida dos outros. Mas também, coitado, ele ganha uma miséria pra fazer um serviço tão desgraçado. Deviam dar a ele 1 milhão por mês, que nem dão pro Neymar jogar bola. Daí ele ia poder comprar uma cobertura em Copacabana, uma mansão sei lá onde, cocaína de qualidade, prostitutas caras, carros caros. Não ia mais dirigir ônibus, nem subir em ônibus. Ia abrir uma empresa, contratar pobres coitados pra chamar de vagabundos, pagar miséria, arrancar o couro. Fazer um moicano, pintar de loiro. Ia acabar se suicidando com uma arma cara, cheio de vazio.
Um passo em falso e eu entrei bem na frente desse ônibus. A batida foi tão forte que minha cabeça foi partida ao meio, deixando escapar sobre o asfalto um monte de coisas. O ônibus seguiu seu caminho. Os pedestres olhavam incomodados com aquele evento imprevisível bem ali no meio da rua, depois continuavam indo para onde eram levados a ir. Me levantei e percebi que conseguia respirar melhor agora. "Você ta querendo chamar a atenção, né?!" gritou uma velhinha com cara de quem não aguenta mais.
Encontrei uma boa sombra de árvore e me sentei debaixo dela. O tempo passou.
O sol já estava quase nascendo, e eu resolvi esperar para ver como seria. Tranquilamente nasceu amarelecendo no céu. As poças d'água secaram, os pássaros cantaram no meio dos carros. Muito estranho, eu já não me lembrava do que tinha me levado até ali. "Devo concluir que amanhã sempre será outro dia?"
Levantei e voltei para casa. No caminho comprei um sorvete, um café, um pastel, uma coxinha, uma paçoquinha e uma cerveja.

domingo, 21 de agosto de 2016

Restos de dias passados 2

O rapaz da mesa ao lado estava escrevendo em seu caderno. Do lugar onde eu estava eu espiava uma das páginas escritas e nela estava o seguinte:

"Assim que a chuva deu uma primeira trégua eu corri para a rua. Consegui andar algumas quadras, estava frio, voltou a chover. Me refugiei durante algum tempo, depois finalmente peguei o ônibus. Chegando ao ponto foi só descer e correr, procurar de novo alguma proteção contra a água que cai do céu pra fazer brotar da terra um pouco mais dessa vida.
Tudo estava molhado, não tinha lugar onde sentar. Mesmo assim dormi e sonhei que estava entrando no consultório onde recebem as pessoas que pretendem se curar de suas loucuras. Uma mulher que se julgava inteiramente normal, estava contando para a recepcionista e para quem mais quisesse ouvir, coisas de sua vida e essas coisas não tinham nenhum interesse, não era possível. A recepcionista que a ouvia tinha o olhar de quem se encontra à beira de um colapso nervoso.
Saí e tive que enfrentar mais chuva.
Já era hora de almoçar e para comer tinha salsicha acebolada com purê. Impossível não lembrar que salsichas são feitas de frangos defeituosos que eles colocam inteiros dentro de trituradores. Para dar liga na massa usam papelão de caixas que encontram largadas na rua, no lixo, e pra deixar gostoso finalizam acrescentando corante e sal. Uma coisa dessas só poderia ser comida por pessoas ignorantes, negligentes, cínicas, pobres, autodestrutivas e apressadas. Bem, é justamente o que somos. Tive a ideia de comer também a salada para compensar. O sabor era indiferente.
Acordei a tempo de pegar o ônibus de volta para casa. De novo lotado. O caminho todo em pé carregando bagagens cheias de coisas inúteis e indispensáveis. O trânsito estava todo emperrado. "Vai demorar", pensei.
Chegar em casa foi um enorme alívio. A sensação de fechar a porta e deixar o mundo do lado fora. No aconchego do quarto a chuva que continuava caindo enorme na rua agora me ajudava a dormir.
Quando amanheceu, o dia já chegou desabando bem por cima do meu corpo inerte, que insistia em permanecer de baixo das cobertas. Só que estava calor."

O rapaz deixou a escrita por alguns instantes. Olhava fixo para um ponto qualquer na parede. Ele estava com cara de quem não sabe o que fazer no mundo. Em segredo, reprovei essa atitude e percebi que ele estava pensando o seguinte:

"Por que eu escrevo essas coisas tão horríveis? Eu olho pro papel e fico pensando que eu queria inventar ideias bonitas para redimir a humanidade. É uma ideia antiga, com certeza, pretensão de milhões de desavisados que viveram e morreram ao longo da história toda, muitos sem reconhecimento nenhum.
O carro na frente dos bois, o passo maior que a perna. Essas imagens me invadem. Uma torre construída sem alicerce, às pressas; a base mais estreita que os pavimentos mais altos. Ela vai desabando por dentro. É feita de material poroso revestido com coisas colocadas do lado de fora para mostrar que dessa vez ficou bonito, dessa vez está feito bem feito. Uma grande obra, inigualável.
E então me arrependo do pensamento doloroso que novamente surgiu não sei de onde.
Eu queria ter escrito algo que mostrasse a compreensão admirável de que o mal não existe, de que a vida é um grande fluxo de acontecer e que é preciso simplesmente desapegar desse mal hábito do pesadume. Mas isso tem que ser logo, tem que ser hoje, tem que ser claro e transparente. Um monumento à superação da fraqueza... Mais uma vez me apresso e acredito estar na posição de um santo que olha com compaixão e bondade para os tropeços cegos dos outros! Dos outros, os meus se acabaram, definitivamente!
Descubro então minha própria espera pela compaixão. Sede de sofrer mais, sofrer até que me estendam a mão, até que não possam evitar o sentimento da obrigação de acolher o pobre coitado. Alguém vai rir - eu já sei - é inevitável, "coitadinho do coitado", e eu vou rir também e dizer que estava só brincando e que na verdade isso tudo é bobagem.
Não foi à toa que a mente humana criou a imagem do diabo. Às vezes eu vejo na rua o escárnio esculpido em alguma cara miserável, vermelha de álcool, babando impropérios inaudíveis aos carros que passam de olhos fechados.
O vazio continua no mesmo lugar, intocado. Ele aumenta, na verdade, é claro. Sem nenhuma razão controlável, tudo vai se desfazendo, o que parecia estar bem feito se dispersa, liberando novos espaços para o nada. "

Achei todas essas conclusões uma vergonha. Me levantei e paguei a conta, o rapaz continuou lá, com a mesma cara de cachorro abandonado.
O tempo passou e ele continuou na mesma mesa, diante de seu caderno de anotações. Eu já estava muito longe dali, tinha até chegado em casa.
Quando finalmente ele se levantou para ir embora, todos até os funcionários tinham também deixado o bar e apagado as luzes. Ao tentar sair o rapaz deu com a cara bem na porta fechada, que era transparente, de vidro. Como ele podia ver o lado de fora, não pode entender imediatamente o que impedia sua saída e tentou novamente. Seus dentes sangraram e mancharam o vidro, fazendo com que ficasse claro o que estava acontecendo. "Entre mim e o lado de fora existe uma porta de vidro. Acho que terei que quebrá-la", ele pensou, mas, em seguida notou que ela estava destrancada. O rapaz então riu de sua própria estupidez. Era tão óbvio. Sentiu um alívio por perceber que não estava louco e que também não estava preso no bar até o amanhecer.
Riu novamente, lembrou de seu dia, de seus dilemas literários e acabou ficando um pouco melancólico de novo. Nada demais.
Interrompeu seus devaneios, e enfim resolveu sair. Mais sangue e um dente quebrado. Deu de novo com a cara no vidro.



quarta-feira, 20 de julho de 2016

Restos de dias passados

Primeiro eu pensei que quando olho nos olhos das pessoas na rua, noto que eles são como janelas de uma casa abandonada. Em seguida, pensei que essa percepção devia ser um engano, a ser esclarecido a seu tempo.
Entrei no ônibus e fiquei esperando que ele saísse do lugar. Pela janela eu via, lá fora, um homem que sorria como uma criança enquanto mijava na rua logo após ter baixado suas calças bem na frente de todos os passantes. Alguns fingiam que não estavam vendo, outros não fingiam nada. Veio correndo carregada de sacolas a mãe do rapaz, "você não pode fazer isso assim aqui na frente de todo mundo! já falei!" e subiu as calças do filho com a mão que estava livre. Ele não parou nem de rir nem de mijar. Bem atrás deles o verde das árvores estava emoldurado pelo azul ardido do céu, como numa pintura.
Eu peguei uma caneta, um papel e anotei o seguinte: "Às vezes o dia parece um filme de terror. Outras vezes parece outra coisa. Quanto mais beleza há em meio ao terror, e quanto mais eu sei ser efêmera essa beleza, mais terror há no terror. Quanto mais de longe se pode ver o quão perto se encontram terror e beleza mais um acaba se passando pelo outro."
O ônibus continuava parado. Decidi descer e ir andando mesmo.
No caminho fui refletindo sobre minha anotação, sem ter certeza se eu deveria guardar ou jogar fora. No fundo, o problema era o mesmo de sempre, "e se fosse eu o menino mijando na rua? e se fosse eu a mãe do menino? do que depende a diferença entre eu ser eu e eu ser eles?".



terça-feira, 14 de junho de 2016

Contramão

"Cada vez mais eu não poso deixar de ter a mais profunda certeza de que sou a única pessoa no mundo capaz de entender o que realmente acontece. " Foi isso que ele declarou enquanto secava os copos atrás do balcão, sem a menor alteração na expressão. Eu segurei o riso e ele completou, "Ou é isso ou então minha mente produziu uma forma tão enorme de engano, que me coloca na posição de ser aquele que comete, sem nenhuma dúvida, o maior erro do mundo", e pegou mais copos sujos deixados sobre a pia pelos clientes.
Em seguida, ele percebeu que eu não tinha mesmo dinheiro para pagar pelo café e disse que não tinha importância porque, de um ponto de vista capaz de ultrapassar a banalidade das coisas cotidianas, aquela nossa conversa, o café, o dinheiro, eram o mesmo que se nenhum de nós tivesse sequer saído de casa naquele dia, ou que ninguém houvesse dito nada, ou que nem meus pais nem os dele tivessem tido a oportunidade de fazer-nos nascer no mundo. Baseado nesse argumento, ele não só dispensou o dinheiro que eu lhe devia, como me serviu mais um café inteiramente grátis. Diante disso, eu achei que seria importante testar superficialmente a realidade daqueles acontecimentos. Do meu lado estava um cachorro amarelo e ele parecia querer muito beber café. Eu coloquei a xícara no chão e ele bebeu enquanto balançava o rabo.
Ao se deparar com essa situação, o rapaz que enxugava os copos sofreu um conflito na mente.
Ele percebeu que caso ele se recusasse a separar no seu entendimento a realidade em unidades imaginárias pequenas ligadas por fios invisíveis, cada qual feito de um material específico, então, sempre lhe faltaria a palavra mais adequada para dizer de forma compreensível seus pensamentos, e isso acabaria causando angústia dentro de seu estômago e do cérebro. Bom, por outro lado, ele percebia que a paz de espírito somente poderia ser produzida uma vez que sua visão de mundo realizasse a volta necessária para que ele se tornasse capaz de assistir e esperar que o cachorro bebesse todo o café sem que começasse, contra sua intenção, a brotar por detrás de seus olhos, duplicações e extensões daquele acontecimento.
Assim que concluiu a reflexão, notei que foi soprado pra dentro de seu ouvido, como que pelo próprio Deus, o seguinte: "seu pensamento sobre o mundo é todo muito certo. No entanto, quanto mais ele se torna autoconsciente mais ele contradiz a si mesmo. A única forma de realizá-lo de forma plenamente coerente, portanto, será eliminando-o, o que, obviamente, não poderá ser resultante de nenhum projeto porque, nesse caso, estaria necessariamente implicado um procedimento de avaliação constante das relações entre avanço e retrocessos - Isso levaria a coisa toda à falência." Foi isso e depois parou.
O rapaz, então, começou a lavar mais copos e eu pensei que se naquele momento ele pacificamente rasgasse seu corpo com uma das facas deixadas sobre o balcão, seu sangue desceria pelo ralo junto com água e sabão. Essa atitude, segui pensando, naquele momento, não seria, talvez, acompanhada de nenhuma dor, mas seria condição inevitável da santificação de seu ser, que enfim superaria a dualidade corpo-mente. Mas, logo em seguida, achei melhor não, que melhor seria que ele continuasse lavando copos, e foi o que ele continuou fazendo mesmo.    

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Inimigos imaginários

Essa coisa que me toma de repente é como uma corrente marítima, como ondas que se movem de dentro pra fora. Forçado não sei por qual crença a permanecer sentado no mesmo lugar em quanto o dia passa, meus nervos vão ficando completamente eletrizados. Meu corpo sofre de uma epilepsia latente, quer se sacudir, gritar, comer, morder as coisas, quebrar as coisas. Não há, diferente do que pode parecer, nisso nenhum ódio. O que sinto é uma avalanche de impulsos frenéticos que me impelem a fazer, contra minha vontade, um monte de coisas e garantir que todas elas sejam bem feitas e rendam bons frutos. Eu faço um pouquinho de cada uma dessas coisas o dia inteiro. Vou revezando, primeiro uma, depois outra, antes que a dedicação exclusiva a uma única acabe realizando seu potencial - existente na mesma medida em todas elas - de me matar de tédio.
Todos os dias depois do almoço chega o momento em que me canso um pouco, fico cheio de despropósito. Nesse momento eu saio para dar uma volta pela cidade. À essa altura eu já sei bem que por mais ruas que eu percorra, nada, nem um sorvete, nem uma cerveja, nem um café, nem mesmo um pastel, tem o poder de dissipar esse cansaço, esse tédio.
Isso acontece porque não importa com o que eu me entretenha, no fim das contas, mesmo que indiretamente, mesmo que da boca pra fora sendo contra, enquanto eu jogo as regras do jogo, em algum momento eu terei que retornar ao ponto onde estava. Terei que me sentar diante do computador, abrir um caderno, tomar notas, esboçar cronogramas, orçamentos miseráveis, elaborar planos de fuga.
E se eu tivesse, mais uma vez ainda, um trabalho de verdade? Então eu estaria pior, embora a rotina acabasse me levando a sentir como se eu não existisse, ou que existisse menos, ou seja, que eu existisse obviamente, sem duplicações simbólicas, de forma indubitável, prática, rumo ao fim de semana, "faço, logo, existo".
Outro dia, na mesa de um bar, acabei ouvindo conversa alheia. O rapaz dizia a um homem, que pela calvície devia ser seu pai: "Acredito, no ponto em que me encontro, que daqui em diante, pra ser sincero, devo enrolar e enrolar bastante, e assim o tempo vai passando. Quando parecer que já perdi muito tempo na vida, quando for a hora de mergulhar no arrependimento e no desespero, então será também, julgo eu, tarde demais e tempo de partir." O homem calvo continuou apenas olhando o filho, que aproveitou para concluir: "Chegado o momento, eu irei, é claro, ainda que tomado por essas doenças tristes e incuráveis que têm os velhos, escalar a Montanha Sagrada em busca da iluminação."
Ao ouvir um relato dessa natureza, pedi no balcão um torresmo e mais um café, se me lembro bem. Enquanto mastigava eu pensei, "está muito bem, mas quando vier a ditadura, o velho sábio será capturado do topo da Montanha Sagrada, denunciado talvez por seus próprios parentes ainda vivos e decepcionados. Sob tortura terá que explicar do que fugia, em seguida sendo forçado a revelar o esconderijo de seus supostos comparsas subversivos. Já sob a ditadura do proletariado, acabará sendo tomado por isolacionista anti-classista, adepto de ideias reacionárias, praticante de um naturalismo burguês. Não escapará ao fuzilamento sumário.
Esse tipo de devaneio acaba, afinal, consumindo muito a mente. É daí que brotam aquelas ondas frenéticas. O tempo passa enquanto aqui dentro são produzidos pensamentos que têm vida própria. Frequentemente, eu os alimento com mais literatura, em busca de que seja possível fazê-los sobrar no mundo. É importante que os pensamentos sobrem no mundo sem que seja preciso dar sobre eles maiores explicações, esclarecer detalhes, revelar significados ocultos.  

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Imagens de sonhos

Era como se toda vez que eu tentasse dormir alguém imediatamente acendesse a luz e eu não conhecesse nenhuma forma para apagá-la eu mesmo, a não ser quebrando a lampada, e que quebrar a lampada pudesse causar algum tipo de transtorno incalculável.

Nunca mais será possível, parece, descrever os pássaros, as árvores, o ruído da chuva caindo sobre o telhado. Necessariamente, ao aroma do café passado no início de uma tarde ensolarada estará misturada a lembrança de tudo o que não foi e que poderia ter sido.

Depois eu tive um sonho: As palmeiras imperiais tem muitos metros de altura e mais de cem anos de vida. Uma delas tinha bem perto da base um buraco que foi cuidadosamente acimentado pela prefeitura. Fico pensando que , em vez disso, seria preferível deixá-lo aberto para que em seu interior pudessem acomodar-se bichos, famílias, estudantes, bandidos e até freiras. Seria uma boa oportunidade de abrigar do frio, do calor e da chuva esses viventes inúteis.
Em seguida a palmeira acabaria apodrecendo inteiramente de dentro para fora e desabando bem no meio da rua.