sábado, 14 de novembro de 2015

Lateralidades

A viagem era muito longa, impossível permanecer sentado tantas horas sem ser tomado por grandes incômodos. Percebi, felizmente, que quando eu me concentrava apenas nos sons feitos pelas patas dos cavalos ao chocarem-se com o asfalto, o tempo passava sem dúvida mais rápido. Na verdade, melhor ainda, ele deixava de existir. "O que aconteceria se eu me dedicasse, daqui em diante, apenas a ouvir os sons das patas dos cavalos batendo contra o asfalto?" Esse pensamento trazia uma sensação tão agradável, que imediatamente eu fazia um pequeno esforço para me desviar e prestar atenção em qualquer outra coisa, até que de novo viesse o mal estar.
Eu ficava olhando as casas à beira da estrada conforme a carroça ia deslizando de uma cidade para outra. Dentro de cada casa havia um certo tanto de pessoas e não havia diferença nenhuma entre elas. Elas deixavam as luzes acesas quando anoitecia, depois apagavam e iam dormir. Havia os doentes que passavam por dores noturnas incontroláveis e os bebês pequenos que choravam por seus próprios motivos. Ainda assim, claramente, eles eram sempre os mesmo em todas as casas e todas as cidades, também iguais umas às outras.
Uma parada foi feita em um galpão enorme no qual havia pelo chão inúmeras coisas quebradas impossíveis de identificar. Alguns trabalhadores em uniformes horríveis estavam sentados no chão mascando pedaços longos de mato. Um deles se aproximou da carroça com uma alegria inexplicável arrebentando no meio da escuridão. Ele era o responsável por limpar os cavalos, e ele cantava músicas inventadas de sua própria cabeça enquanto esfregava o pelo dos animais exaustos. Quando acabou ele disse "boa noite!" aos passageiros, dos quais não obteve resposta.
"A ideia de paz interior de Santo Agostinho é muito oportuna aos dias de hoje. Na antiguidade, mesmo um escravo podia ser livre sendo escravo, caso fosse livre em seu interior." Foi isso que eu falei pra moça ao lado. Ela não achou a menor graça, como se nunca tivesse ouvido nada mais idiota em toda sua vida, e depois voltou a dormir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário