sábado, 24 de outubro de 2015

Transfiguramentos

No muro de um prédio antigo alguém pichou "Vamos devagar porque temos pressa". Dois pintores, sem ler o que pintavam, iam pintando de bege o muro histórico, devolvendo a ele sua pureza original do século XIX. Estavam apenas fazendo seu trabalho.
Então começou a chover e de repente a chuva já era muita. Não demorou para que ela lavasse da parede a tinta nova, a pichação, a tinta velha. Em seguida, dissolveu como açúcar os tijolos, os pintores e o prédio inteiro, que transformados numa mistura líquida nojenta de café com leite, desceram pelo bueiro.
Do outro lado da rua um velho mendigo assistia ao acontecimento como se, daquele momento em diante, estivesse tudo acabado. Sem poder fechar a boca, ele estava paralisado segurando seu bloco de notas e sua lapiseira. Percebi que ele não poderia mais continuar com suas anotações. Os olhos estavam fixos no vazio que sobrou depois da chuva.
Quando eu era criança aprendi que não faz bem sentar na calçada nem colocar a mão nas paredes e nos postes da rua porque os mendigos ficam sempre se encostando neles e transmitindo doenças. Era como se eles sujassem a cidade e não o contrário. Mesmo assim achei importante saber o que ele estava escrevendo, e que agora já não tinha mais motivos para continuar. Então me sentei ao lado dele e notei que ele estava pensando que era uma pena o fim da melancolia irônica destruída pela chuva. "Vamos devagar porque temos pressa", era uma bela lição, ainda mais por ser ignorada por todos os passantes, tanto quanto por quem quer que tenha pago pintores para ocultá-la.
"De todo modo", disse a ele, "talvez não valha mesmo a pena, que acha?" e, em seguida, argumentei "Agora, afinal, há espaço para coisas novas, aberto pelo próprio acaso, talvez..." O velho  não se animou a responder nada e, inexplicavelmente, começou a chorar como criança. Não podia mais parar. Claro, não demorou muito para que eu entendesse que aquilo não tinha solução. Decidi, então, pegar um livro na minha mochila. Abri e fiquei lendo.  

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