quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Refluxos

Não ter compromissos nem urgência, às vezes pode ser positivo, por exemplo, nos dias em que acabamos entrando no ônibus errado. Em vez de pedir desculpas ao motorista e descer o quanto antes, é muito mais produtivo, aceitar o descuido inexplicável como destino e permanecer para saber onde vai dar. Basta tomar alguns cuidados. 
Quando cometi esse engano semana passada, acabou que o ônibus foi me levando para um lugar onde não ia já há muitos anos. Percebi logo que era justamente o bairro onde morei por toda minha infância e início da adolescência. Imediatamente percebi que as casas, prédios, árvores e o próprio traçado das ruas, estavam impregnados de alguma substância maligna que me dava vontade de vomitar.
Claro, isso não foi de se estranhar. Bruscamente, sem que eu soubesse pra onde estava indo, me deparei com todas aquelas coisas antigas, misturadas a coisas novas e estranhas, e descobri que elas guardavam nos próprios tijolos o  testemunho do meu surgimento no mundo.
Quando o ônibus passou na frente do prédio em que morei, eu estava pensando sobre quantas pessoas tinham se mudado também, ou morrido, ou vindo morar ali, "quem estaria dormindo no meu antigo quarto?!" Bem nesse momento entrou no ônibus uma antiga moradora do prédio, que era conhecida por ser louca. Aproveitei para descer.
Imaginei que seria doloroso esperar por outro ônibus, então decidi ir andando até o centro. E, de fato, conforme ia deixando para trás o bairro da infância e me aproximando das regiões simpáticas do centro, ia sentindo alívio. "Aquilo tudo continua lá", concluí. Pelo menos tá longe.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Otimismo parte 2: a desintegração

"Jesus pra mim é um amigo", ele disse e depois pediu mais um pastel. A moça concordou e anotou o pedido. "Mas pastor é ladrão, engana as pessoas". A moça concordou de novo. Mais pro lado um velho ia ouvindo a conversa e pensando que quase sempre as pessoas se enganam sobre as coisas que dizem. Na maioria das vezes não se cogita que aquilo que se diz não tem nada a ver com as verdades das coisas. De todo modo, é justamente isso que faz alguém ser uma pessoa e não outra. Essas conversas são sempre um pouco cansativas, de modo que decidi ir para outro lugar.
O sol estava muito forte e me fez entrar na igreja para me esconder. Era dia das mães e o padre estava falando sobre a Virgem Maria que, segundo ele, teve uma maternidade muito conturbada desde a gravidez até a morte do filho. Embora o assunto fosse sério, como de costume, às crianças é permitido correr dentro da igreja. É sempre impressionante observar que algumas delas são capazes de correr e, ao mesmo tempo, darem atenção ao sermão. Foi desse modo que durante a explicação sobre a Virgem, uma menina saiu da brincadeira olhando curiosa para um bêbado parado perto da porta. Ela perguntou para o bêbado o que teria acontecido caso Maria tivesse, espontaneamente, abortado. "O Cristo, então não teria nascido", veio como resposta indiferente.
Eu saí da igreja e subi na bicicleta. Pedalar no meio dos carros, na contra mão, quando é preciso, é sempre uma sensação muito interessante. Se a mãe fosse avisada a respeito disso ela não dormiria, certamente, mais uma noite sequer.
Mas e se a Virgem tivesse abortado? Eu pensei que eu gostaria de acreditar que às vezes não há nenhuma diferença entre uma pessoa fazer uma coisa e não fazer nada - ou fazer o contrário.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Otimismo

A chuva caiu tão abundante ao longo de toda a noite, que em alguns momentos tive a impressão de que alguém teria deixado por acidente o chuveiro ligado antes de dormir. O dia amanheceu ainda todo encharcado e cinza. O denso silêncio que que reinava por dentro e por fora de todas as coisas só era cortado pelo ranger terrível de uma furadeira ou qualquer outra ferramenta elétrica com a qual alguém realizava, talvez a umas três ou quatro casas longe daqui, logo pela manhã, algum trabalho furioso.
De repente me dei conta de que não quero mais escrever porra nenhuma. Quero continuar perdendo meu tempo apenas, da forma mais imbecil que pode haver. Um dia de folga por semana. É como uma concessão divina. Um dia perfeitamente maravilhoso em meio a uma rotina extenuante de trabalho sem sentido. Para não perder o costume, me levantei ainda cedo, café, pão com manteiga. Algumas coisas, afinal, ao não mudarem nunca, por mais que mude todo o resto, fazem com que o mundo se torne um lugar melhor. Em seguida verifico o e-mail e o facebook. Nada, cada vez menos. Ótimo.
Resolvi sair enquanto não havia chuva. É mais um daqueles momentos de espera. A sensação de que o tempo vai passando lento se torna mais clara. Parei num bar de esquina, pedi uma coxinha e uma Sub-zero. Era um canto pitoresco da cidade. Acaba o asfalto, começa o paralelepípedo. A mudança aparentemente brusca faz, na verdade, coerência com a igreja que fica no meio da praça.
O álcool produziu uma breve leveza na mente, propícia sobretudo para que fosse possível refletir acerca do desamparo e da inconsistência das coisas. O sacrifício da razão em busca da paz de espírito talvez seja, então, uma forma mais elevada de desapego, pensei. Ou de burrice.
O restante do dia passou todo de uma vez, lavado por litros de água que iam escorrendo fácil das nuvens. Retornando ao ponto de partida, permaneci sentado à mesa jogando fora diversas conversas com a lentidão de quem acredita que viverá para sempre.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Mais um café

Resolvi desligar a televisão e sair mais um pouco. Na rua abri um livro que ultimamente tenho gostado bastante. Umas dez páginas eu li e me fizeram tão mal que tive que parar. O café era requentado, provavelmente feito ainda de manhã. Na pia atrás do balcão a moça ia desfiando com as unhas um frango semi cozido. Ela fazia um esforço extraordinário. "Tá bom o café?", "sim". Muitas vezes a mentira vale mais do que se pensa.
Voltando à rua, a muralha de prédios obriga a dar voltas inúteis. Coincidentemente me agrada sempre gastar o máximo possível de tempo no caminho entre uma coisa e outra. As pessoas nas calçadas formam labirintos feitos de partes móveis. Poucas sensações se comparam ao que acontece quando nos empenhamos em andar o mais rápido possível entre elas sem atropelamentos. São obstáculos difíceis, sobretudo, as crianças que às vezes se soltam das mães para quase sempre rolarem sem nenhuma direção, geralmente atraídas por pombas ou coisas sujas jogadas no chão. Nessa situação o desespero das mães eventualmente acaba resultando bofetadas na cara de suas crianças. Toda mãe odeia sua criança em algum momento, é apenas consequência inevitável do amor incondicional. Talvez construir um ser humano dentro do próprio corpo ao longo de nove meses, dificilmente seja uma tarefa possível de compreender.
Invariavelmente, algumas colheres de açúcar são derramadas pra fora da xícara. Esse tipo de acidente gera ocasião para que as formigas trabalhem sem trégua. Vão levando os grãos de açúcar até que se acabem todos. São longas filas de formiga, trabalhando em cima do balcão, descendo até o chão, entrando em buraquinhos. Durante a atividade muitas morrem. Algumas são mortas por nós, que por vezes as matamos por distração, outras porque elas incomodam realmente. Algumas pessoas acreditam que as formigas tem alma, como todas as coisas vivas. Nem por isso é tão aceitável matar gatos quanto é, sem dúvida, matar formigas. Bem, então algumas delas morrem durante o trabalho que, ainda assim, segue acontecendo. Não é possível, superficialmente, dizer que tipos de formigas são aquelas que saem da fila para fazer uma oração ao lado do corpo das formigas mortas. No entanto há muitas que apresentam essa inclinação. Prestam suas homenagens e voltam ao trabalho, regrado como sempre.