quarta-feira, 29 de julho de 2015

A ressaca

Estava fazendo bastante frio, a conversa não estava especialmente agradável e mesmo a cerveja não chegava a tornar as coisas mais interessantes. Ainda assim continuei bebendo e bebendo até que se criou uma compulsão irracional que me impeliu a envenenar com álcool meu corpo para além de qualquer limite. Claro, no dia seguinte, acordei inteiramente estragado, de forma que me restou apenas voltar a dormir. Minha cabeça doía quase sem nenhuma trégua, e meu estomago estava cheio de enjoo.
Além disso minhas ideias estiveram, ao longo do tempo que passei dormindo, impregnadas de desespero. Sonhei que estava num hospital e que lá tinha uma moça com uma sonda enfiada no braço. Por  acidente eu acabei esbarrando nessa sonda, que  se desprendeu da veia, permitindo que o sangue fluísse abundante para fora enquanto eu corria até o banheiro para pegar pedaços de papel higiênico. Quando retornei a moça estava comendo todo aquele sangue, que era negro e espesso como piche. Ela estava com a boca suja daquela pasta pegajosa que escorria manchando toda sua roupa.
Quando acordei a cabeça ainda doía. Mas depois passou. Daí concluí que a autodestruição nessas condições existe como um ritual de purificação. No entanto, não precisou de muito para perceber também que a tranquilidade depende da proximidade da lembrança da dor e que, passado um tempo, ela se transforma em mera normalidade. Obviamente, a normalidade é o alimento do tédio, que por sua vez será motivo para o reinício do ciclo.  

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Tomar um café na rua

Continuei andando e pensei que deveria parar para tomar um café. Durante o café acabei entendendo que embora o agora, no fim das contas, não seja traduzível num fato universal, tomando como referencial a própria certeza de viver o agora, não há, contudo, nenhuma razão para agir como se fosse o fim do mundo, ainda que seja. Pensei, então, em pedir uma cerveja, mas decidi guardar o dinheiro para necessidades indeterminadas mas previsíveis de algum dos futuros à caminho de fazer-se.
Quando me levantei do banco do bar me lembrei que socialmente não convém ficar parado, e daí resolvi andar. Queria continuar a leitura, mas me lembrei, em seguida, que eu acho que há poucos bancos nas praças. Como resposta imaginária indesejável, surgiu na mente que alguém poderia discordar dessa constatação, veementemente, tanto mais quanto nunca tenha desejado um lugar pra se sentar na rua. Outro bar. Se eu parar e pedir uma cerveja poderei sentar mais um pouco para ler. A cerveja dura mais que o café. Desisti.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Sabedoria e miséria

De todo modo, no caminho pra casa vi que do outro lado da rua, debaixo da marquise da padaria, estava sentado aquele mendigo que ultimamente tem circulado por aqui. Novamente me chamou a atenção o enorme pacote de papéis que ele carrega o tempo todo. Daí fiquei pensando que eu gostaria muito se aqueles papéis fossem, na verdade, obras filosóficas e anotações sobre o mundo. Se um dia for possível confirmar isso, estará realizado naquele velho solitário e faminto, sem dúvida, o absurdo e bonito ideal de uma vida que encontrou sua razão de ser na fruição desregrada e permanente de certas letras obscuras como fim em si.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Um dia de estudos


O esvaziamento nunca cessa de preencher todos os espaços. Ele vai avançando pela rua, sobre as casas, se alastrando rápido através da grama amarelada. Manter algo fixo é quase impossível, por mais de cinco ou dez minutos. 
Nenhum conhecido eu encontrei hoje durante o dia inteiro, a não ser por alguns muito distantes que me fazem um aceno com a cabeça e, em ocasiões raras, um sorriso dispensável. No facebook, pelo contrário, todo mundo está presente, dizendo freneticamente muitas coisa. Às vezes prefiro evitar contribuir com o acréscimo de inutilidades novas. Outras vezes, na verdade, parece que é justamente isso o que de melhor há para se fazer. 
Eu estava aqui esperando e esperando, todo bem vestido, ao meu modo. Está sol e eu uso tênis e calça jeans. Isso são fins de Março. Nada de mais. As pessoas estão falando suas coisas. Todas misturadas e óbvias. Eu sigo esperando. As pessoas passam todas aqui bem arrumadinhas, escondendo de si mesmas a própria estranheza. Porque as pessoas são estranhas, isso sem dúvida. Os conhecidos são poucos e eu às vezes desejo que sejam ainda menos. Que sejam às vezes zero.
O ar condicionado da biblioteca, por algum tempo, consegue me distrair um pouco. Assim que finalizo um parágrafo que parece ter me ocupado durante horas, é impossível para mim permanecer preso à cadeira, como sem dúvida seria recomendável que eu fizesse. É sempre complicado sair um pouco nesses dias em que me vem a convicção de que devo beber menos café. Fatalmente acabo quebrando a promessa. Graças a Deus não sou fumante ou destruiria, com bom pretexto, ao mesmo tempo meus pulmões e minhas possibilidades de escrever ao menos uma ou duas páginas por dia. 
É engraçado observar as pessoas. Elas estão cheias de defeitos tão evidentes na expressão, no modo de andar, de se vestir... Outras estão cheias de qualidades e as qualidades são todas imensamente inúteis.
Tudo está vazio. Algumas pessoas ainda passam e ao passarem dão uma sensação de que estão no lugar errado, ou só passando mesmo; realizando algumas últimas tarefas corriqueiras, mas indispensáveis, antes de irem para casa. A maior parte delas está sozinha, na típica, cotidiana, corriqueira atividade de trabalho. 
A mesa está quente, muito quente. Até agora pouco o sol estava assando-a sem nenhuma piedade.